sábado, 3 de setembro de 2011

O Domínio que as coisas têm


Roupas, Sapatos, Dinheiro:
Futilidades que andam pelas ruas.
Leite, Pão, Arroz, Feijão
Frequentam os super-mercados.


Coisas vivem e matam pessoas.
Roupas e sapatos usam pessoas.
Dinheiro negocia com pessoas.
Leite, Pão, Arroz e Feijão
Bebem e comem pessoas.


O caos se instaurou: 
Na esquina vejo escrito numa padaria: 
Vende-se cem gramas de José. 
O que são mesmo produtos e mercadorias?


Ah!Como somos ingênuos.
O domínio neste tempo caiu
Nas mãos das coisas.
E ainda acreditamos 
Que está em nossas mãos.

E nesses dias, o tempo fechado está.
Este tempo trouxe consigo o vento.
Este vento trouxe consigo areia
Que entrou em nossos olhos.
Está difícil enxergar.

Sento e esperando fico
Quem sabe um dia o tempo abrir.
E quando esse tempo chegar,
Usarei roupas e sapatos,
Beberei leite, comerei pão, arroz e feijão.


sexta-feira, 2 de setembro de 2011

A FLOR E A NÁUSEA


Preso à minha classe e a algumas roupas,
Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me'?


Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos. 
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade. 
Quarenta anos e nenhum problema 
resolvido, sequer colocado. 
Nenhuma carta escrita nem recebida. 
Todos os homens voltam para casa. 
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los? 
Tomei parte em muitos, outros escondi. 
Alguns achei belos, foram publicados. 
Crimes suaves, que ajudam a viver. 
Ração diária de erro, distribuída em casa. 
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. 
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

(Carlos Drummond de Andrade )

 
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